Com a realização da primeira edição do festival de música eletrônica Tomorrowland no Brasil no último final de semana, as festas rave passaram de lugares de drogados, hippies vagabundos e pessoas de gosto musical duvidoso para um evento exclusivo, cheio de pessoas bonitas, e os DJs mais “top” do planeta.

Gourmetizaram-se as drogas sintéticas, como o Ecstasy, o LSD, e o MDMA, e também a filosofia do Namastê.

Fenômeno que pode parecer curioso aos olhos dos mais desatentos, a elevação da música eletrônica como produto de mercado e de identidade de uma classe abastada é só mais um sinal de fagocitose de artes antes produzidas por ou para grupos culturais, sociais e étnicos específicos, como foi o jazz e o rock ‘n roll durante o século XX.

A música eletrônica moderna, como conhecemos hoje, tem origens que datam dos anos 1960, quando sintetizadores pessoais começaram a ser fabricados, entre eles o até hoje famoso Moog.

Antes da Segunda Guerra Mundial, em 1928, o soviético Léon Theremin já havia fabricado o teremim, embora o instrumento tenha ficado na música experimental de vanguarda.

O uso do Moog e de outros sintetizadores foi primeiro difundido pela compositora norte-americana Wendy Carlos. Na segunda metade da década de 1960, roqueiros como Pink Floyd, Emerson, Lake and Palmer, Beatles e Beach Boys começaram a experimentar com instrumentos eletrônicos. No entanto, pode se argumentar que foram os norte-americanos do Silver Apples, e os alemães do Kraftwek e do Can, os primeiros produtores da música exclusivamente eletrônica.

Ao final dos anos 1970, a música eletrônica foi novamente mimetizada, desta vez pelo surgimento da Disco Music. Uma década depois, as primeiras vertentes da Electronic Dance Music (EDM) começaram a ganhar fôlego.

A EDM é, em simplificação, um braço da música eletrônica que engloba alguns de seus estilos mais tradicionais: techno, house, electro. Você também pode chamar a EDM de música eletrônica comercial, própria para rádios, produtora de remixes famosos e de guarda-chuva que criou essa leva de Djs/produtores, como David Guetta e Diplo.

São esses artistas — brancos, loiros, limpinhos, que estão na moda e sempre nas rodinhas do mundo pop — os mais desejados por festivais como o Tomorrowland. Eles fazem música de fácil assimilação destinada para o público de sapatênis, camisa social, que curtem uma bebida-que-pisca.

tomorrowland gourmetizacao namaste Surgido em 2005 na cidade de Boom, na Bélgica (talvez uma coincidência com o “boom” do grave?), o Tomorrowland ajudou a jogar muitos destes nomes para as paradas de sucesso internacional. Além de David Guetta, nomes fáceis de se lembrar são Swedish House Mafia, Nervo, Armin van Buuren (considerado zilhões de vezes o melhor DJ do mundo pela DJ Mag, a revista oficial do EDM), Steve Aoki, Carl Cox, Skrillex, Axwell e Paul Oakenfold (que abriu shows da Madonna no Brasil).

Além da música EDM, todos têm algumas outras coisas em comum: são milionários, requisitados nos pontos mais quentes da playboyzada ao redor do mundo (Ibiza, Florianópolis, a Ministry of Sound londrina, os clubes Pacha em todo o planeta…), tocam com famosos do mainstream de outros estilos musicais, além, é claro, de serem brancos — com exceção de Carl Cox, negro, e Steve Aoki, um norte-americano de ascendência oriental -, e não terem um dreadlock sequer em seus cabelos.

Namastê pra eles, arrisco dizer, é um cheque bem gordo na hora de assinar um contrato pra se apresentar.

Do outro lado do mapa da música eletrônica estão os estilos da rave tradicional moderna. As festas rave se iniciaram na mesma época dos estilos primordiais do EDM, no final da década de 1980. Sua primeira raiz foi o Acid House, que evoluiu para a Música Industrial — com expoentes como os britânicos do Prodigy -, e para as músicas de batidas por minuto (BPM) acelerado: Goa Trance, surgido na Índia; Psy Trance, originário de Israel; e no final da década de 1990 o Prog Trance, já em solo europeu.

Diferente do EDM, os traços que representavam os estilos rave durante sua primeira década eram, em resumo, os seguintes: músicas com pelo menos 115 batidas por minuto (enquanto o EDM não costuma girar em torno de 80 BPM); uma cultura focalizada no coletivo, paz interior, meditação e transcendentalização da mente através da música (e das drogas, por que não?); apreciada por neo-hippies que preferem o contato com a natureza do que com pessoas dentro de casas noturnas; produções e festivais longos (muitas vezes ininterruptos por três dias, ou quem sabe uma semana); diversidade de gêneros sociais, estéticos, econômicos.

Esqueça o público e os DJS limpinhos, e substitua por regatas, dreadlocks, pés descalços, areia, terra, mar, suor, falta de banho. Saem o champanhe e a vodca com energético e entra a água.

Combine essa série de fatores liberais ao fato da música tradicional de rave necessitar mais de atenção do que apenas de álcool, dança e rostinhos bonitos — sendo assim, de difícil assimilação –, e o que vimos durante os anos 1990 e 2000 foi uma ostensiva marginalização deste tipo de evento, mesmo com uma produção incessante e a todo vapor.

Feliz, o público nem ousou protestar, preferindo fechar-se em uma espécie de “Clube da Luta”: você não fala sobre o que se passa dentro das raves, não deixa de comparecer às festas (que, normalmente, cobram preços módicos por seus ingressos), e ainda consegue assistir apenas a shows dos melhores artistas da cena.

No Brasil, a música eletrônica sempre representou uma cena forte, seja no EDM nas casas noturnas, seja nas grandes raves.

Em São Paulo, a Lov.e foi importantíssima para a proliferação do Drum ‘n Bass e para a jornada internacional de DJs como Marky. Fechada após quase duas décadas de atividade, deu espaço para clubes como a Pacha, a D-Edge, a Clash. Fora da cidade, mas ainda dentro do estado, a Anzu é até hoje um dos espaços mais requisitados na região de Itu. A Phoenix, no Casa Grande Hotel do Guarujá, foi enorme na década passada. Ao sul, o Balneário Camboriú é destino certo para os amantes do EDM durante o verão.

Do lado das raves, foram grandes expoentes da década passada a XXXperience, a Tribe, a Electrance, além das diversas festas menores espalhadas para o país. Hoje, a Tribe está mais focada nos gêneros de “Low BPM”, embora não tenha entrado de vez no mainstream. O Universo Paralello, bienal, cada vez mais atrai um público migrante do EDM, mas se recusa a chegar perto do mainstream. Gigante, o evento acontece em uma praia isolada na Bahia, com palcos dedicados às mais vertentes da rave.

No Brasil, os produtores de Trance estão pipocando por todo o território nacional: Uttara, do Amazonas; Capital Monkey, do Distrito Federal; Element, do Paraná; Hippie Noise, do Ceará; Baphomet Engine, em Goiás.

No único dia em que o Tomorrowland teve apresentações de PsyTrance, Element esteve presente, mas o palco foi encerrado com Skazi, conhecido como o DJ que não toca em raves de verdade há quase 10 anos.

E já que voltamos ao Tomorrowland, é importante notar outros fatores sobre a primeira edição do festival aqui no Brasil. O primeiro deles é o custo, não só dos ingressos, mas de tudo que envolvia o festival. Estacionamento: 150 reais por dia. Cerveja: Onze reais cada garrafa. Água: R$ 5,50. Uma dose de vodca: R$ 27,50. Misturá-la com energético custava mais R$ 16,50.

Os ingressos, é claro, são “um show a parte.” Variavam entre R$ 299 e um super-ultra-mega-blaster-vip de R$ 1899, que dava direito a camarote e rango preparado por chefs conceituados.

Quem se importa? Eu não sei. Nunca vi ninguém comer caviar em rave, só chupar pirulito em formato de coração.

O festival transmitido pela MTV Brasil, amplamente povoado de famosos pela organização, além de ter a imagem limpada pela imprensa desde seu anúncio, em meados de 2014.

Ao final do Tomorrowland, na noite do último domingo, jornais como a Folha de São Paulo noticiavam o ótimo trabalho da PM em apreender “pequenas quantidades de drogas” em forte esquema de segurança na porta do festival.

micareta eletronica

Em resumo: um festival eletrônico para gente de bem e para a família. Uma micareta. Um carnaval fora de época.

Pena pra quem foi pro Tomorrowland, porque na onda do “Clube da Luta” da música eletrônica, aconteceu no mesmo final de semana o festival Respect, na Ilha Comprida, em São Paulo. Sobre o Respect, nem uma notícia sequer nos grandes jornais e veículos de comunicação. Se algum artista global famoso foi até lá, o que eu duvido, tenho certeza que fez merda à vontade, sem se preocupar com nenhum fotógrafo da mídia de fofoca.

Os ingressos para os três dias de Respect, com camping incluso, custaram R$ 170 no primeiro lote, e R$ 270 no último.

Um grande aviso na página do festival dizia, em letras garrafais “NÓS NÃO DISTRIBUÍMOS INGRESSOS VIP!”

Antes da Respect, entre os dias 17 e 21 de abril, aconteceu na cidade de Lagoinha, também em São Paulo, o Festival Mundo de Oz. Lá a grande atração era o open bar de água, amplamente comemorado pelo público. Tudo isso, com camping incluso para os cinco dias, saiu por R$ 140 no primeiro lote, e R$ 350 na porta.

No final do ano, ficar nove dias acampado na paradisíaca praia de Pratigi, na Bahia, curtindo o Universo Paralelo, está saindo por R$ 450 com o camping incluso.

Um aviso para os mais ingênuos: lá o camping é na praia, debaixo de um sol escaldante de 40º. O banho é gelado, em banheiro unissex, com água do mangue — isso se você lembrar de tomar banho diariamente. Os banheiros são módicas valas cavadas a mais ou menos um metro pra dentro da areia.

O traje obrigatório é sunga para homens, e biquínis pras mulheres. Lugar pra sentar é canga. E não estranhe se você ver gente pelada andando pra cima e pra baixo. A nudez é permitida, e nunca será tratada como atentado ao pudor.

Se tudo isso te parece programa de índio, convido você a continuar frequentando casas noturnas e festivais como o Tomorrowland. Se, por outro lado, tudo isso parece menos artificial e mais conectado com a realidade, eu garanto que você passará nove dias inesquecíveis pelo resto de sua vida.

Lá o Namastê é de verdade, e significa encontrar a paz interior, fazer amigos, dançar até esquecer que existe um mundo ao seu redor. Pra você que pensa que Namastê é uma balada regada a Ecstasy e vodca com energético, bom…

Publicação original neste link, autor Arthur Tavares.