Eu sempre gostei do mar. E ainda gosto. Mas hoje descobri uma coisa paradoxal. A imensidão de água pode representar algo tanto grandioso e lindo quanto sufocante e sombrio. Descobri isso hoje porque finalmente consegui encontrar o filme infantil que eu gostava na infância, pra assistir junto com a minha filha. A música, do filme “Ariel, a pequena sereia”, diz assim:

“Eu quero estar onde o povo está / Eu quero ver um homem dançando (…)
Com barbatanas não se vai longe / Tem que ter pernas pra ir andando”.

Ao rever o vídeo e cantar a letra que eu não sabia que ainda estava na minha memória, lágrimas me vieram aos olhos tamanha a identificação que senti naquele momento com a letra da música, comparando-a com a minha vida atual e seus dilemas. Uma sereia que não quer mais viver no mar. Quer ser humana e ter pernas pra dançar. Ela se sente sufocada naquela imensidão de água. Não consegue mais respirar…

Pra pequena sereia aqui (esta que vos fala) a paixão pelo príncipe representa na verdade a paixão por um ideal. Um ideal que pressupõe uma certa ruptura com o mundo onde ela está inserida. Romper com a sociedade que impõe regras hipócritas predeterminadas por alguém antes mesmo de ela nascer e nas quais ela não se encaixa. Um mundo onde há cobranças de todas as ordens, disputas por poder econômico, desamor e abandono, discriminação e ódio. E repressão. Muita repressão. Um mundo onde você não pode ser você mesmo, sob pena de ser rotulado como anormal ou louco, e ser proporcionalmente discriminado por isso.

Os pés que a sereia deseja representam a sua verdadeira essência. Pés que pisem na terra. E que dancem. Dancem sem parar. Até que grama vire lama… A “minha” pequena sereia encontra na dança um instrumento pra “transcender” tudo aquilo com o que ela não se encaixa, encontrando, mesmo que apenas pelo tempo de duração da música, o seu lugar no mundo. Enquanto a música toca, ela alcança um estado de alma inatingível por qualquer outra forma conhecida. Ela se eleva. Ela flutua. Ela entra em contato com o seu verdadeiro universo. Nesse universo não há regras hipócritas.

Lá existe PAZ. Não há disputas porque o ser e o sentir são suficientes para que cada um atinja a felicidade interior.
Lá existe AMOR. Todos se amam livremente, sem cobranças de qualquer natureza.
Lá existe UNIÃO. Todos são irmãos e ajudar o próximo é um valor em si mesmo, natural e gratuito.
Lá existe RESPEITO. Há irmãos diferentes entre si, mas essa diversidade não é motivo de segregação, preconceito, discriminação.
Lá só existe positividade. Energia positiva. Boas vibrações. Good vibes. Lá, a pequena sereia respira.

E vocês sabem como se chama a música que tem o poder de transcender? Não por acaso, ela se chama “Trance”. Ao contrário do que a maioria das pessoas imagina (por puro desconhecimento) “Trance” é o nome que se dá a algo que é mais do que um gênero de música eletrônica. No meu modesto entendimento (para aqueles que desejam um conceito “técnico”), trata-se de uma melodia baseada na repetição harmônica de sons que tem o poder de elevar a consciência a estados transcendentais que possibilitam ao individuo identificar manifestações ocultas da mente (o que você também pode chamar de psicodelia!).

Mas eu prefiro o meu conceito cultural: o Trance é a representação moderna da contracultura, inspirada na mistura dos ideais do movimento hippie dos anos 60 e de antigos rituais hindus. Um movimento que visa romper com os valores negativos impostos pela cultura vigente, baseados no poder econômico e em regras sociais discriminatórias e segregadoras, dando lugar ao cultivo de valores como a paz, o amor, a união e o respeito (consagrados na sigla P.L.U.R., do inglês, Peace, Love, Unit, Respect). Isso se dá através da música e da dança, como forma de atingir um estado de consciência elevado, que coloca o ser em comunhão com a natureza e com o cosmos.

Eu descobri o Trance há pouco tempo, mas fui tomada pela sua energia. Não tenho quase nenhum conhecimento de música eletrônica e nunca fui a nenhum festival “roots” como se costuma dizer. Mas eu acho que não é preciso nada disso pra ser um Trancer. Porque o Trance é um ideal em si mesmo. Basta senti-lo. E de preferência compartilhá-lo, como eu estou fazendo agora. Se todos nós conseguíssemos transcender a negatividade que o mundo de hoje nos impõe, cultivando os valores verdadeiramente ligados à essência do Trance (Paz, Amor, União e Respeito), nossas vidas se aproximariam do universo ideal, que, infelizmente, hoje ainda é apenas um universo paralelo…

Talvez o que nós amantes da música eletrônica estejamos fazendo nas nossas festas “RAVES” que duram a noite toda e o dia inteiro (as quais ao contrário do que muitos pensam não são apenas antros de drogas e excessos) seja apenas buscar atingir, mesmo que por algumas horas, um contato com esse verdadeiro universo. Isso porque, nesses lugares (sempre ao ar livre e em contato com a natureza) há uma atmosfera, uma energia única que consegue envolver todos nesse ideal. O ideal do P.L.U.R. Basta abrir a mente pra senti-lo, seja qual for a forma que você escolhe pra fazer isso… Os excessos não são incentivados, sequer tolerados por aqueles que cultivam a verdadeira essência do Trance. Ao contrário, ali se celebra a VIDA.

Evidentemente que como todo movimento, o Trance traz consigo a caricatura daquilo que ele representa não só através da música, mas das mais diversas formas de expressão, como modos de se vestir, de usar os cabelos, tatuar o corpo, falar, se comportar perante o planeta e os demais seres do universo. Alguns de nós fazemos todas ou algumas dessas coisas apenas para nos expressar. E no mundo Trance não há repressão àquilo que não faz mal ao outro ou a você mesmo.
Mas, pra mim, se a pessoa não curte música eletrônica e não estiver a fim de dançar por horas a fio, se vestir como um hippie, fazer dreads nos cabelos, tatuar Ganesh nas costas, ser vegano e responder a tudo que ouve com a palavra “gratidão”, não precisa. Basta cultivar em seu coração os valores que este movimento valoriza e divulga. Com isso o mundo já seria bem melhor. Esse é o mundo onde eu desejo que a minha filha, a minha pequena tranceira, cresça e seja feliz.
Ou seja, trancer ou não, apenas transcenda!

P.L.U.R.! ((( ॐ )))

(Primeiro texto ligado à cultura Trance elaborado pela autora, em março de 2013).